Mapas que aprisionam
A cartografia do poder refere-se à produção de informações geográficas e mapeamentos orientados para fortalecer e consolidar estruturas de poder hegemônicas. Segundo Rodrigues (2029) “a cartografia nunca foi uma ciência neutra, isenta, e sim uma representação adaptada da realidade, que promove relações de poder”. Historicamente, essa abordagem cartográfica tem sido utilizada como instrumento político para garantir o controle territorial, econômico e social por parte dos estados, elites ou outras entidades dominantes.
Essa cartografia convencional apresenta características que pode ser facilmente identificadas nos seus traços cartográficos, tais como; a centralização do discurso, foca nas necessidades e interesses das elites ou do estado, muitas vezes ignorando as perspectivas das populações locais ou marginalizadas; representação seletiva, inclui ou omite informações de acordo com interesses políticos ou econômicos; instrumentalização geopolítica, utilizada para explicar conquistas territoriais, exploração de recursos ou delimitação de fronteiras detalhadas ao poder dominante; controle e vigilância, mapas e dispositivos criados para monitorar, vigiar e controlar e; colonialismo e imperialismo, amplamente empregados no período colonial, os mapas como instrumento de controle dos territórios conquistados e submissão de povos nativos.
Podemos citar alguns exemplos de representações cartográficas históricas que expressa os processos de dominação territorial, tais como, mapas coloniais, criados para demarcar territórios colonizados, reforçando a divisão de terras entre potências europeias, sem considerar as territorialidades locais; cartografia militar, produzida para estratégias de guerra, expansão territorial ou manutenção de hegemonia e; geopolítica e divisão territorial, como os tratados de Tordesilhas e de Madri ou mapas que legitimam políticas expansionistas.
Nessa lógica, podemos refletir sobre a publicação da edição de 2023 do mapa Chinês que repercutiu no cenário internacional. Segundo Rodrigues (2023),
Desde seu lançamento oficial em 28 de agosto pelo Ministério de Recursos Naturais, o novo mapa chinês tem estado no centro das atenções. As reivindicações territoriais da China não são novas, mas esta edição estende sua jurisdição sobre áreas disputadas ao longo das fronteiras com a Índia e a Rússia, bem como sobre o conturbado Mar do Sul da China.
Esse novo mapa oficial publicado pela China reafirma modelos tradicionais de expansão territoriais que historicamente geram tensões regionais e preocupações na comunidade internacional. Todavia, além dos moldes tradicionais que resistem ao tempo, na contemporaneidade, o poder na comunicação evoluiu de estratégias repressivas diretas para abordagens subjetivas, baseadas em métodos psíquicos e algorítmicos que incentivam o discurso e a participação. Essas técnicas transformam o controle em prazer, promovendo a exposição e o micro espetáculo nas mídias digitais. Dispositivos de controle, como vigilância e proteção, expandiram-se com os TICs, adotando o modelo palinóptico, onde “todos vigiam todos” (Silva; Veloso, 2022).
Nesse prisma, Sousa et al. (2024) investiga o “mapeamento dos comportamentos que antecedem a tomada de decisões e como o mercado de luxo da moda tem utilizado isso no cotidiano da sua estratégia para alavancar o conceito da marca no mercado e gerar desejo de compra nos seus consumidores” e afirmam que as redes sociais são os espaços de acesso livre a esse conteúdo.
Nessa perspectiva, ainda sobre as TICs, enquanto possibilidade de investigação, Carrieri, Andrade e Morais (2024, p. 61) propõem “desmistificar a ideia de que há, na atualidade, uma face democrática do acesso e controle das informações geográficas. A atividade inicial se propõe a investigar a criação, o crescimento e o monopólio do Google Earth”. Vemos, que, embora essa e outras plataformas facilitem o acesso à dados geográficos, elas têm interesses corporativos hegemônicos, portanto, isenta de neutralidade e de caráter democrático.
Nesse contexto, a cartografia do poder é questionada por sua função excludente e manipuladora, opondo-se a propostas de mapeamentos mais inclusivos, como a cartografia subversiva, decolonial, colaborativa e outras que busca dar voz a povos e culturas historicamente marginalizados. Essas reflexões são fundamentais para compreensão dos mapas não como apenas representações neutras da realidade, mas instrumentos políticos que manipulam a visão de mundo.
Possibilidades de mediações…
Os estudos cartográficos têm desempenhado um papel crucial e preponderante na consolidação do poder e na manutenção de estruturas de domínio ao longo da história. Trazemos como exemplos ilustrativos mapas históricos, como o Tratado de Tordesilhas, a definição arbitrária de fronteiras nacionais em conferências internacionais, como a de Berlim (1884-1885); o Acordo Sykes-Picot e o mapa chinês de 2023. Isso retrata as discuta e preocupações políticas por trás dessas representações, os mapas foram utilizados como ferramentas para legitimar a posse de terras e o controle de territórios por nações desvinculadas da cultura e da identidade local.
Essa dinâmica majoritariamente eurocêntrica, subsidiada pela ciência, muitas vezes ignorou as territorialidades pré-existentes e desconsiderou os laços afetivos, sociais e culturais das comunidades originárias com os seus lugares
As mediações que sugerimos, propõem-se desconstruir essas narrativas dominantes por meio de uma mediação didática que explora os mapas institucionais como artefatos históricos de poder, e, assim, promover uma leitura crítica desses documentos, estimulando os estudantes a questionar as relações entre cartografia, poder e territorialidade.
Nessa perspectiva, os movimentos da mediação didática pode ser iniciado com introduções e discussões para o entendimento conceitual básico sobre Cartografia e suas interfaces políticas. Pode ser interessante apresentar durante as discussões exemplos de mapas históricos, como o Tratado de Tordesilhas e de Madri; o Mapa das colônias africanas na partilha da África; os Mapas da ONU, que delimitam áreas de ocupação e conflito e, dentre outros, o mapa contemporâneo e polêmico da China. Desse modo, ressaltar como a cartografia foi usada para legitimar processos de exploração e dominação.
Em meio a esses movimentos de intensidades, propor análises coletiva dos mapas. Em grupos pequenos para contemplar o maior número de mapas explorados, os estudantes os analisam criticamente e discute as mensagens implícitas nos mapas, as escolhas de design (cores, legendas, escala) e a ausência de territorialidades locais.
E, assim, em ações que vislumbra a subversão cartográfica, estimular os estudantes a reinterpretarem esses mapas, criando versões que incluem territorialidades e narrativas das comunidades afetadas. Essa etapa pode integrar elementos artísticos e colaborativos, como mapas afetivos ou mapas culturais alternativos.
As análises e socializações pode buscar respostas para as inquietações dos estudantes, como por exemplo, quem elaborou este mapa? Qual o contexto histórico e geopolítico internacional? Quais interesses estão representados? Que territorialidades ou narrativas estão ausentes e as impostas?
A partir dos direcionamentos que essas e outras questões trilhem é possível a elaboração de mapas críticos e subversivos, ou seja, cada grupo criará um “contra-mapa” ou “mapa-fictício” que representa os territórios com base nas territorialidades, cultura e identidades ignoradas, invisibilizadas pelos mapas oficiais.
Nessa obra, os estudantes podem utilizar recursos artísticos, como colagens ou desenhos livres, para destacar as perspectivas das comunidades locais e a capacidade de produção econômica, cultural e intelectual de autogestão de seus territórios sem interferências externas. Isso implica em ‘mergulhos profundos’ em situação de pesquisa para conhecer de perto esses povos, suas culturas, nuances, lutas e resistência.
A culminância pode contemplar apresentações dos mapas seguidos de questionamentos da turma fomentando discussão coletiva sobre como a cartografia pode ser ressignificada enquanto ferramenta de resistência e empoderamento e promover reflexões na direção da compreensão crítica da cartografia como construção de poder, valorizando a pluralidade de vozes e a justiça territorial.
É sabido o poder da cartografia e o quanto ela é historicamente explorada como cartografia do poder, do controle e dominação de territórios e do discurso que legitima as corporações hegemônicas. Essa abordagem pode ser um tema instigante para o ensino médio, especialmente quando trabalhada de forma rizomática, conectando múltiplas dimensões sociais, históricas, geográficas e outras.
A sugestão pensada envolve o mapeamento as relações de poder em diferentes contextos e escalas, destacando como essas forças controlam territórios, identidades e dinâmicas sociais. Objetivando provocar reflexões sobre como o poder molda a organização espacial, sempre conectado às dinâmicas políticas, econômicas e culturais.
Nesse horizonte, explorando os espaços vividos dos envolvidos, podemos iniciar instigando os estudantes a identificarem manifestações de poder presentes no espaço vívido (esses momentos pode ser mediados no ensino fundamental), a hierarquia familiar, símbolos de autoridade (prefeituras, escolas, delegações), práticas cotidianas (regras escolares, normas sociais) e outras. Desse modo, esse levantamento pode ocorrer por meio de mapas mentais, afetivos, subversivos ou anamórficos.
Em nova oportunidade, amplia-se a análise para o contexto histórico, discutindo episódios em que o poder define territórios e fronteiras, como por exemplo, a formação dos estados nacionais; processos de colonização como o que o Brasil foi submetido ou o processo e intencionalidades na emancipação de municípios.
Com base em estudos locais, nos alocamos no estudo de relações de poder no estado da Paraíba (podendo ser adaptada ao contexto dos envolvidos). Nessa linha de fuga, podemos fomentar a investigação sobre o conceito de territorialidade e a fragmentação territorial do estado como a emancipação política de municípios e a criação de regiões metropolitanas. Questionamentos como, quais as motivações e justificativas? Esses municípios emancipados atendem ao conceito de cidade? As regiões metropolitanas instituídas pelo poder legislativo apresenta os elementos essenciais para esse status? Essas emancipações oportunizou a emergência de uma elite local? Os gestores municipais são cidadãos membros da comunidade?
Os envolvidos podem fazer pesquisas comparativas com a dinâmica de outros estados do Brasil. Em breve pesquisa, por exemplo identificamos que o estado de Pernambuco tem uma população estimada em 9.539.029 milhões de habitantes distribuída em uma área de 98.312 km2 e tem 185 municípios. Enquanto, a Paraíba, com menos da metade da população de Pernambuco, estimada em 4.145.040 habitantes e distribuída em apenas uma área de 56.584 km2 tem 223 municípios (IBGE, 2024). Essa e outras análises, do contexto histórico por exemplo, pode figurar como suporte fatídico e contextual para os estudos propostos
Nessas situações de aulas são interessantes a fundamentação teórica em informações e dados confiáveis como os publicados pelo IBGE, documentos oficiais, artigos científicos revisados por pares e outras. As discussões iniciais podem trilhar por reflexões que possam atender a demandas locais e outras que atendem a interesses políticos e eleitorais. Porém pode ou não esbarrar nos critérios técnicos e geográficos para elevação ao porte de cidade ou região metropolitana.
Em tempo, nesse movimento do estudo oportuniza; pesquisas em grupos (cada grupo faz o estudo de caso de determinado município ou de determinada região metropolitana), investigações em bases de dados oficiais e reportagens acerca dos tramites, critérios ou justificativas de criação do município e; entrevistas com citadinos e autoridades locais (elaboração prévia de questionário ou roteiro de entrevistas) para coletar informações sobre a participação dos cidadãos e percepções sobre os impactos da criação de pequenos municípios ou de região metropolitana nas vidas das pessoas, nas relações econômicas, de trabalho, de acesso à educação, à saúde, à segurança, infraestrutura etc.. Isso dá suporte para compreensão da participação popular no processo de emancipação dos municípios e das mudanças em suas vidas.
Diante do estudo realizado e discutido em momentos oportunos com o pequeno grupo, segue para a dimensão representativa; mapeamento dessa cartografia do poder, elencando elementos que sinaliza para hierarquia de poder instituído, mas também as subjetividades dos citadinos, suas inquietações, necessidades e dificuldades enfrentadas.
Esses mapas subversivos, que trazem a cultura, vozes e resistência de um povo podem ser produzido/publicado de diferentes maneiras, como por exemplo, utilizando aparatos tecnológicos como a plataforma digitais Padlet (áudio, imagem, texto e outros) ou; mapas físicos em painéis inspirados na arte, pinturas, grafite, colagem de imagens, depoimentos, dossiê, documentário e outros, permitindo que os envolvidos integrem essas perspectivas em representação visual compartilhada.
Enquanto resultados, esperamos que os estudantes compreendam como interesses políticos promovem a “dança das fronteiras” dos territórios, muitas vezes em detrimento de critérios técnicos, econômicos, culturais ou sustentáveis locais; desenvolvam habilidades de pesquisa, análise e produção de conhecimento e; engajamento cidadão, ao entenderem os impactos da manipulação territorial, os estudantes podem se tornarem mais críticos e conscientes de seus papeis como cidadãos, capazes de questionar e propor alternativas para a organização territorial.
Essa sugestão de mediação com enfoque na cartografia do poder busca descortinar como os mapas, as ferramentas práticas previstas neutras, são, na verdade, instrumentos de poder que reforçam narrativas hegemônicas e interfere nas dinâmicas sociais, políticas e econômicas. A ideia é oportunizar uma desconstrução crítica da cartografia convencional, destacando como ela tem sido utilizada historicamente para consolidar domínios e perpetuar desigualdades.
Nesse contexto, na introdução conceitual pode ocorrer com a análise de mapas geopolíticos de forma convencional, como representações nacionais ou regionais que enfatizam fronteiras, centros de poder econômico ou territórios de influência política. Pode-se explorar, por exemplo, a expansão de projeções cartográficas (como Mercator), destacando como elas privilegiam determinadas regiões em detrimento de outras, reforçando a centralidade de potências globais e perpetuando visões eurocêntricas.
Além disso, exemplos contemporâneos de cartografia digital, como as plataformas (Google Earth, Google Maps, Waze) ou dados de geolocalização em redes sociais. Os estudantes são convidados a investigar como esses mapas priorizam certos espaços – áreas urbanas, rotas comerciais, polos turísticos – enquanto invisibilizam territórios periféricos, áreas indígenas e comunidades tradicionais.
Em perspectiva de aprofundamento das discussões, os estudantes podem investigar como a cartografia convencional, cartesiana, tem servida a diferentes formas de dominação, como a colonização, o controle militar, a expansão capitalista e até mesmo o racismo ambiental, evidenciando a ausência ou o apagamento de territórios específicos nos mapas.
Em novos movimentos, a turma pode elaborar mapas críticos que denunciam as forças hegemônicas por trás da cartografia convencional. Nesse horizonte, essas produções (mapas) podem de trazer territórios excluídos ou marginalizados, comunidades quilombolas, povos originários, favelas e periferias urbanas; dinâmicas de exclusão, áreas desprovidas de serviços públicos mapeadas ao lado de zonas privilegiadas e; centros de poder explícito, representações gráficas que evidenciam onde e como o poder econômico, político e cultural (elitizada e valorizada) se concentram.
Essas ações pode desencadear reflexões na direção de como podemos redesenhar mapas que deem voz às populações invisibilizadas? Podendo incluir mapeamentos participativos e colaborativos que integram narrativas locais, histórias orais e territorialidades vívidas, desafiando as convenções do poder e propondo novas formas de enxergar e viver os territórios. Tais produções, mapas subversivos, pode seguir a ideia de mapas comparativos, utilizando plataformas digitais ou convencionais para sobrepor representações hegemônicas e subversivas, evidenciando os contrastes entre a visão oficial e as realidades invisibilizadas.
Esses materiais podem ser compartilhados em redes sociais ou painéis com o uso de legendas provocativas.
Referências
CARRIERI, Raquel A. M.; ANDRADE, Renata F. M. de; MORAIS, Jackson J. P. de (org.). Cartografia e poder: proposições didáticas investigativas. Goiânia: C&A Alfa Comunicação, 2024.
RODRIGUES, Bernardo S. Cartografia e projeções de poder nas relações internacionais. Diálogos Internacionais, v. 6, n. 59, abr., 2029Disponível em: https://dialogosinternacionais.com.br/?p=1648. Acesso em: 20 out. 2024.
RODRIGUES, Carmem M. O poder dos mapas: a complexa política por trás do novo mapa chinês. Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/o-poder-dos-mapas-china/. Acesso em: 25 nov. 2024.
SILVA, Mayara K. D. da; VELOSO, Maria do S. F. Cartografia do poder: da coerção pelo uso da força à sedução pela ação algorítmicas. Culturas Midiáticas, v. 16 (2022): Edição anual de publicação contínua. Disponível em: https://doi.org/10.22478/ufpb.2763-9398.2022v16n.63527. Acesso em: 10 abr. 2024.
SOUSA, Amanda P. et al. O papel da inteligência artificial na análise de dados para estratégias de marketing na indústria da moda de luxo. Fatec. Sebrae, v. 11, n. 20, p. 207, jan./jul., 2024. Disponível em: https://www.revista.fatecsebrae.edu.br/index.php/em-debate/article/view/274/304. Acesso em: 26 nov. 2024.
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