A cartografia artística nos convida a explorar o mundo além das fronteiras da cartografia tradicional, transformando mapas em expressões de criatividade, criticidade, emoção e reflexão. Segundo Tiberghien (2013, p. 235), “A arte e a cartografia estão ligadas há muito tempo, talvez desde as origens da cartografia. Os mapas medievais conhecidos como T em O eram ricamente ornamentados, assim como os portulanos que aparecem desde o século XIII”.
Para Seemann (2012, p. 147), “Fazer arte com mapas é um ato criativo mais descontraído, subjetivo e ousado de representar o mundo sem muita preocupação com os aspectos formais”. Assim, num breve esforço podemos pensar a origem da cartografia e da arte ainda no imaginário do homem pré-histórico, materializada nos afrescos dos artistas primitivos em estruturas rochosas, como as inscrições rupestres; e em artefatos confeccionados em peles de animais, argila e outros.
Nessa abordagem, a arte revela territórios imaginários, narrativas culturais e perspectivas que transcendem os limites convencionais. Por meio de sons, traços, cores, formas, movimentos e tantas outras expressões artísticas a cartografia artística amplia nossa compreensão do espaço, promovendo diálogos entre o subjetivo e o concreto, o estético e o político. Assim, “podemos afirmar que arte e ciência geográfica, quando funcionam como intercessoras umas das outras, podem propiciar novas maneiras de pensar o espaço” (Pereira; Girardi, 2019, p. 238). Nessa ótica,
Existem três diferentes categorias de impulso cartográfico no mundo artístico: “sabotadores de símbolos” que usam os aspectos visuais dos mapas para estabelecer conexões com lugares pessoais, fictícios ou metafóricos, os “agentes e atores” que produzem mapas e participam de atividades para desafiar as condições vigentes ou para mudar o mundo e os “mapeadores de dados invisíveis” que utilizam metáforas cartográficas para visualizar “territórios informacionais” como a bolsa de valores, a internet ou o genoma humano. (Seemann, 2012, apud D’Ignacio, 2009).
Nesse percurso, somos desafiados a enxergar os mapas não apenas como representações estáticas do mundo físico, mas como paisagens em movimentos de sentidos, territórios de transformação e instrumentos de reflexão crítica sobre a sociedade, suas nuances e seus imaginários. Nessa perspectiva, Seemann, 2012, p. 149) que “Essa “carto-arte” pode consistir em colagens, pinturas, manipulações digitais no computador, mapas estampados em luvas, desenhos pintados em cima do couro de uma vaca ou poemas em forma de mapas […]. Uma exposição de arte pode se tornar um mapa por si mesmo”.
Nessa lógica, a cartografia artística ou “carto-arte” transcende a funcionalidade tradicional e intencional dos mapas para se tornar uma expressão artística multifacetada, capaz de dialogar com diferentes saberes. Essa abordagem evidencia o caráter rizomático da arte que potencializa o mapa em uma intensidade de muitas entradas e conexões. Nesse contexto, a cartografia artística não é apenas sobre o que o mapa representa, mas também sobre como ele pode ser reinterpretado como obra e espaço de interação. Isso reforça a capacidade da arte de romper limites, propondo leituras que estimulam novas percepções sobre os territórios físicos, simbólicos ou imaginários.
Algumas possibilidades de mediações…
Obras musicais, enquanto mapas abertos, são construções de significados que transcendem o plano imediato, têm a capacidade de orientar, rememorar histórias e conectar experiências individuais e coletivas. Nesse contexto, a proposta de análise musical como cartografia artística busca oferecer espaços de exploração criativa, onde as obras musicais são interpretadas como mapas abertos a múltiplas conexões e subjetividades.
Ações pedagógicas dessa natureza, rizomática, promovem a horizontalidade dos saberes e autonomia dos estudantes, incentivando-os a criarem representações simbólicas e interpretativas que reflitam suas percepções. Desse modo, as músicas possibilitam representar suas nuances de diversas formas, seja por: narrativas, criar linhas e conexões representando as emoções e paisagens que a música evoca; pinturas: retratar as percepções em formas, núcleos e texturas; colagens: combinação de imagens e fotos que representam os contextos ou histórias associadas à música e; até mesmo construções tridimensionais.
Nesse processo, o professor atua como facilitador, instigando reflexões sobre como os ritmos, melodias, letras e atmosferas de uma obra musical podem se conectar a paisagens emocionais, sociais ou históricas. Tais experiências potencializam espaços interdisciplinares, que mescla música, artes visuais e linguagem para compor mapas que são, ao mesmo tempo, geográficos, culturais e afetivos.
A obra musical pode ser a mesma para todos envolvidos ou de livre escolha daquela que faz sentido para o estudante. Cabe realizar uma exposição das produções, onde cada estudante explique seu processo criativo e as conexões traçadas. Os resultados individuais podem conduzir a criação em um mapa (galeria) em ambiente colaborativo analógico ou digital, como exemplo o Padlet, incentivando a diversidade nas formas de expressão e garantindo que cada mapa seja único e representativo.
A socialização pode estimular o diálogo coletivo, valorizando as múltiplas leituras e significados atribuídos à mesma ou distintas obras. Isso pode fomentar reflexões sobre como a música, a arte e os mapas podem interagir para ampliar a compreensão do mundo e relacionar as experiências com conceitos de interdisciplinaridade e liberdade criativa nos estudos cartográficos.
Nesse horizonte, vislumbramos possibilidades de experiências educativas transformadoras, onde diferentes linguagens se entrelaçam em um rizoma de significados, valorizando a subjetividade e a criatividade individual e coletiva dos estudantes.
A sugestão de mediação didática propõe análises de obras de arte na perspectiva dessas enquanto mapas abertos a múltiplas conexões, onde interpretações e significados dos estudantes se entrelaçam em uma teia de saberes, percepções e memórias. Nessa conjuntura, as obras de arte deixam de representar paisagens estáticas para se voltarem a territórios dinâmicos de exploração, permitindo a ressignificação a partir dos diferentes olhares.
A mediação parte do reconhecimento das obras como manifestações culturais situadas em contextos geográfico, históricos e sociais, conectando-as às percepções individuais e coletivas dos envolvidos. Esses movimentos pode favorecer ambientes de criação de novos sentidos e diálogos entre a arte e as dinâmicas cotidianas.
As mediações podem ser iniciadas com a contextualização dos conceitos de Cartografia e de Arte, suas relações com a leitura de obras como mapas que revelam histórias, sentimentos e símbolos.
Os estudantes, individualmente ou em grupo escolhe a obra de arte para análise. Inicialmente a investigação transita pela biografia dos artistas ou escolas artísticas que produziram as obras, destacando seus contextos culturais e históricos.
Nas análises é importante incentivar a identificação de elementos visuais, como formas, núcleos, texturas e composição, relacionando-os às possíveis mensagens ou interesses do artista. Desse modo, os estudantes podem mapear as sensações e ideias que a obra desperta, construindo diagramas ou esboços em grupo.
No processo, na sequência das análises coletiva do grupo, cada estudante será convidado a reinterpretar a obra a partir de suas percepções associadas à sua dinâmica cotidiana, utilizando diferentes linguagens artísticas, como desenhos, charge, pintura, escultura, música, a literatura ou dança, ou seja, novos mapas que dialogam com o original.
As socializações dos resultados podem ocorrer a partir de uma exposição (também considerada um mapa) com as obras reinterpretadas, mapas visuais, audiovisuais ou táteis criados pelos estudantes reforçando a ideia de que o conhecimento construído em rede é um processo contínuo e coletivo.
Essa possibilidade de mediação é um convite aos estudantes para ultrapassar os limites da representação tradicional do espaço físico e explorar territórios simbólicos, imaginários e subjetivos. Essa proposta sugere um ambiente de aprendizagem aberto, dinâmico e criativo, que privilegia as múltiplas conexões entre os estudantes, suas vivências e expressões culturais.
Nesse enfoque, artístico e rizomático, os mapas são concebidos como obras de arte e formas de expressões pessoais. Assim, podemos nos inspirar em exemplos históricos, como os mapas T e O, criados no contexto medieval e que refletem o imaginário teocêntrico da época, e os portulanos, mapas náuticos ornamentados usados pelos navegadores no período das grandes navegações e; nos mapas presentes em games, na literatura e filmes de ficção científica. Ambos refletem interações entre conhecimentos, culturas, estéticas e criatividade, isto é, mapas que representam não apenas lugares, mas também ideias e sentimentos.
Abaixo, alguns exemplos:
Mapa “T e O”: mapa-múndi
Representação Esquem
ática do Mapa “T no O” ou Mapa de Roda.
Mapas imaginários: a terra de Oz
Center na Biblioteca Pública de Boston – EUA (reprodução)
Mapas imaginários: Ilha do Prazer
Cortesia da Cornell University – PJ Mode Collection of Persuasive Cartography
No processo de criativo os estudantes desenham ou pintam mapas que representam seus territórios internos, sonhos, memórias ou narrativas culturais podendo inserir integrações multimodais, além de traços e núcleos, pode incluir colagens, texturas, emojis, música, poemas e outros ou digital, por exemplo utilizando o “Fantasy Map Generator” (Link: https://deepai.org/machine-learning-model/fantasy-map-generator).
Enquanto socialização pode ser organizada uma exposição interativa onde os mapas sejam apresentados como obras de arte, acompanhados de explicação do processo criativo e dos significados dos territórios representados.
Referências
PEREIRA, Ernandes de O.; GIRARDI, Gisele. Cartografia de um processo de experimentação com arte e linguagens em aulas de geografia. ETD- Educação Temática Digital, Campinas, SP, v.21, n.1, p.222-241 jan./mar. 2019. Disponível em: http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1676-25922019000100222. Acesso em: 12 nov. 2024.
SEEMANN, Jörn. Subvertendo a cartografia escolar no Brasil. Geografares, Vitória, Brasil, n. 12, p. 138–174, 2012. DOI: 10.7147/GEO12.3191. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/geografares/article/view/3191. Acesso em: 25 nov. 2024.
TIBERGHIEN, Gilles. Imaginário cartográfico na arte contemporânea sonhar o mapa nos dias de hoje. Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo, n. 57, p. 233-252, dez. 2013. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/76239. Acesso em: 23 out. 2024.
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